Giulianne Fortunato
Antes da minha chegada ao Japão, eu me encontrava em um grande distanciamento comigo mesma. Na época, o cursinho pré-vestibular desanimava qualquer intuito de desenvolvimento pessoal. Decidi sair daquela rotina. Os planos foram desfeitos e o amanhã era uma incógnita. Sabia que precisava emplacar meus sonhos deixados de lado.
Lembrei que quando mais nova, almejava uma transformação social através da educação. Mas como sabemos, as ingênuas fantasias infantis miram o céu, afinal o papel dos jovens é sonhar - acho que é por isso que são chamados de futuro da nação, eles carregam os sonhos de adultos frustrados. Por mais que as certezas eram mínimas, sabia que não queria ser alguém frustrada.
Durante esse processo, meu primo de quatro anos, residente do Japão, foi diagnosticado com autismo. Imediatamente, procurei artigos e documentos que me dessem suporte suficiente para o algo a mais - a transformação que tanto sonhava tinha que partir de algum ponto. Sabendo que posteriormente estaria ao lado dele, estudei a respeito das dificuldades da sua inclusão social, da necessidade de uma educação apropriada, e dos entraves da comunicação.
Ao chegar ao país de cultura extremamente oposta ao Brasil, vi pelos gestos e condutas dos japoneses que a imersão naquele lugar seria irreversível. Os principais detalhes de que me recordo eram: o baixíssimo volume das conversas; lixo parecia não existir – ele sempre estava no lugar adequado; os vizinhos, como sinal de gentileza, trocam presentes entre si, em geral frutas ou flores do próprio jardim do quintal; as casas formam um padrão em que somente as cores das paredes externas são desiguais; a mobilidade urbana é fascinante, você consegue atravessar metade da ilha de Honshu, a sétima maior ilha do mundo, em uma hora e meia de trem-bala; não há morador de rua e os templos, como ?su Kannon localizado em Nagoya, carregam a tradição do país.
Conheci e vivi em diversas paisagens, tanto em Toyohashi-shi, a pequena cidade em que morei, como em Tokyo, aonde Shibuya, a avenida mais famosa do Japão, formava a imagem que a maioria tem do país – telões iluminando a noite com a transmissão de diversas propagandas e as pessoas formando multidões para atravessar a rua. Fosse de carro, monotrilho e até mesmo de bicicleta, procurava desvendar cada entranha, observava minuciosamente a norma e conduta dos residentes. Era mágico o suficiente para não existir rotina engessada.
A relação entre os próprios japoneses era reservada e raramente se encontrava grupos mesclados de residentes e estrangeiros. As amizades japonesas são majoritariamente formadas no berço e a inserção do brasileiro nesses grupos era limitada, não há espaço para enturmar. Inclusive, os bairros em que estrangeiros moravam eram mais baratos, pois os japoneses não compravam casas no local ou nos arredores. De acordo com a localidade que você estava, era nítido se era um bairro japonês ou não, pois os bairros tradicionais são limpos, organizados e tranquilos. Neles há até vendas de hortaliças e frutas em barracas com o caixa aberto, lá não há nenhuma necessidade de alguém vigiar a venda. Em outras palavras, a segurança é indiscutível quando contrastada ao Brasil, já que não lembro de me sentir insegura uma única vez.
Além disso, tive a oportunidade de morar em um desses bairros tradicionais japoneses e a recepção dos vizinhos foi encantadora. Eles nos presenteavam com flores do próprio jardim e trocávamos frutas como símbolo de gentileza e respeito.
Durante um passeio de bicicleta pelas ruas, pensei sobre a viagem e percebi que tinha dado passos importantes. Recordei que quando aterrissei no país, meu primo pronunciava pouquíssimas palavras e entender o que ele desejava transmitir era uma árdua tarefa. No entanto, aquela não era mais nossa realidade. Ao acompanhá-lo nas consultas de pedagogas, fonoaudiólogas e psicólogas aprendi exercícios que o ajudariam na comunicação e praticávamos diariamente. E após um curto período de tempo, ele estava pronunciando tudo que ouvia e aos poucos assimilava os significados às palavras. Posteriormente, atrelamos ainda à linguagem de sinais, já que seus pais são deficientes auditivos. A memória guardada deste pequeno ato me traz um sorriso único, porque eu pude modificar a realidade da minha família através do meu singelo e ingênuo sonho.
Sobre mim, posso dizer que houve reencontro e me desvendar foi e ainda é a jornada mais intrigante que tenho a seguir. Ao Japão, agradeço a todas as experiências e aprendizados vividos.
Afirmo que esta história somente vive em mim, já que recusei a me conformar com situações desconfortáveis. É preciso enxergar caminhos alternativos e ter coragem de segui-los, além de brigar pelos seus propósitos.